terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Conto do primeiríssimo dia

         As primeiras horas do dia foram compartilhadas com pessoas maravilhosas, cada uma com um perfil distinto e incrível. Minha mãe iluminava a praia, e mesmo com o apagão que acontecera, ela distribuía luz para todos que estivessem presentes. Rodrigo exibia delicadeza e amizade, aos meus olhos, e eu me sentia ótima por estarmos numa sintonia tão boa. Renata e Fernanda chamavam atenção de muitos olhares, com suas formas encorpadas e suas roupas curtas na moda. Eu via ali minhas duas irmãs menores, e não deixava de lembrar e repetir para mim mesma: “como já foram pequenas e inocentes”. Hoje, esbanjavam sagacidade e vontade de se divertir como quisessem. E, no canto, com o noivo ao lado, estava Marília, tão linda com seu vestido já usado, todo florido e com um decote invejável. Nossos olhares eram tão sinceros, e eu me sentia segura tendo uma pessoa daquela ao meu lado por mais de dez anos, sem deslize algum. Todos nos abraçamos e a ordem não importava, só o fato de estarmos juntos e desejando honestamente um ótimo novo ano já era fundamental.
Outras pessoas passaram pela minha mente enquanto tomávamos champagne já na temperatura ambiente. Eu sabia que encontraria meu amor em alguns instantes e isso me confortava, em parte. Também gostaria de encontrar outras manifestações de afetos naquela madrugada. Nos primeiros minutos de 2012, após abraços acalorados, as mulheres da minha vida me arrastaram para o mar, todas crentes de que as sete ondinhas eram necessárias. Não entendi bem e não lembrava qual era o objetivo disso, mas mesmo assim fiquei com elas, apesar de ter medo de me molhar muito. Papai ligou nesse instante, e enquanto gritava a cada onda pulada, tentava entender o que ele dizia, lá de uma praia não muito distante. Sua voz era felicidade, mas suas palavras eram quase incompreensíveis. Apenas consegui entender os votos sinceros de que este ano será muito melhor do que os anteriores e, quem sabe (pedi para ele repetir cinco vezes, e não uso hipérboles), haja verdadeiramente uma viagem para Fernando de Noronha. Mentiras sinceras me interessam muito, pensei.
Quando terminamos de rir como hienas e desejar felicidade às almas presentes, fotografamos alguns momentos, fazendo poses parecidas, e depois continuamos, deixando Mamãe e Rodrigo para trás. Eles ficariam sozinhos por mais um tempo e logo voltariam para continuar o ano novo seguros em casa, do jeito que gostam.
Começamos a desbravar os calçadões, repletos de gente de branco e com bebidas nas mãos. Todos pareciam felizes, à sua maneira, e eu também me sentia alegre. As músicas, tão variadas, eram diferentes a cada dez passos. O carnaval, que só será daqui a alguns meses, já estava sendo cantado na praia de Boa Viagem. Com a câmera em punho, filmei alguns segundos de cenas de gente dançando e cantando o Galo da Madrugada e Madeira do Rosarinho. Juro que não comecei a desejar o carnaval, pois quero aproveitar cada dia como se fosse o último. Olhava rápido para as pessoas, pois não precisava encontrar ninguém por acaso. Na verdade, queria olhar para todos a minha volta, tentar entender o que pensavam naquele momento. Quanta ousadia e utopia!
Andamos bastante, e tivemos que esperar pessoas de saia rasgada e tatuagem nas costas. Recebi poucas, mas boas ligações. Uma delas me deu motivação pra continuar a buscar conhecimento e sabedoria nessa vida. Pessoa linda que disse que me amava no telefone. Não pude deixar de ficar toda boba e emocionada. E, também por isso, comecei a ficar sem palavras pra dizer, queria ser recíproca, mas ela acabou me desarmando com tanta beleza. Ela acariciou-me, tão distante, com palavras muito gentis. A vida é dura, mas existem esses momentos de delicadeza e amor e não dá outra: a gente fica todo derretido. Depois meu amor me ligou. Amor oficial. Todo agoniadinho com as palavras, mais sabe demonstrar coisas do que falar. Mas tentou, e falou o esperado. Senti-me naturalmente segura e feliz por tê-lo pertinho de mim. Fisicamente naquela hora, ele ainda estava a um ou dois quilômetros, mas isso não era problema.
Continuamos e de repente uma do grupo quis se separar, partindo meu coração. Realmente não somos o bastante para as pessoas, e isso é fato. Temos que saber lidar com isso. Mas quando as pessoas partem cedo, a gente chia mais do que o normal, e fica emburrada, triste e chata. Fica chata até o outro dia, inclusive. Não atende às ligações das pessoas e ainda lê a mensagem, mas não responde – por falta de crédito e de vontade. Com muita dorzinha no peito permiti que se afastasse de mim, e ficasse toda a madrugada e a manhã do novo ano com seus outros amigos. Amigos recentes, mas, nem por isso, indignos da sua presença. Eu que não fui digna, inferi. Pois bem, continuamos a andar. E, depois da primeira ligação do meu amor, houve outras, meio cansativas, que tentavam se encontrar naquela multidão.
Quando finalmente chegamos à frente do prédio mais célebre daquela avenida, ia ligar para o menino, mas ele me achou primeiro, no meio de outras pessoas de branco. Abraçou-me com carinho e me deu um beijo rápido, respeitoso. Odeio as atitudes comedidas desse menino, mas também amo; é complicado.
E o objetivo da noite foi alcançado. Vimos também a família do meu amor, quatro mulheres com bebidas nas mãos, dançantes, felizes e sem desmanchar os sorrisos no rosto. Chamavam a atenção de todos os homens que passavam. Riam alto e conversavam também. Para juntá-las bastava pegar a câmera, pois estavam ávidas por fotografias. E ébrias, diga-se de passagem. Precisavam eternizar aquela algazarra. Novamente meu telefone tocou e desta vez uma pessoa querida falou comigo, talvez até pela primeira vez, ao telefone. Achei tão legal e naquele momento o desejo de visitá-los cresceu. Sugeri e logo fomos invadindo aquele mundo de gente. Esbarravam em nós, meninos e homens eram ousados a ponto de nos puxar ou falar algo deselegante, pessoas nos analisavam com olhos bêbados ou nem nos viam.
Em pouco tempo chegamos no 4016, já nas primeiras horas de 2012, e não houve problema ao entrar. Logo os vi, Joana, um pavão, Antônio, ardendo em fogo com sua camisa vermelha. Nada foi oferecido, só a entrada e conversas soltas, e, é claro, desejos de um bom ano novo. Não podiam faltar. Nem mesmo nos mais loucos dos corações. Havia muita gente para dar atenção. Já éramos figurinha repetida, pensei não tristemente, só constatei. Por isso ficamos lá à nossa própria diversão, Daniel e Fernanda sorrindo e conversando da forma mais boba possível. O Whisky tinha feito bem àquele menino. Fernanda, de poucos anos, ficava bêbada só com os outros, e pude ver como era influenciada, como quase todos, pelas pessoas ao redor. Joana fumou um cigarro e Fernanda depois comentou secretamente, com surpresa, o ato considerado errado. Ela ainda era inocente, afinal de contas. Minha irmãzinha. Eu sabia que havia resquícios disso na minha irmã caçula.
Se não havia conversas nem atenção para mim, eu só podia fotografar. Até agradeci em silêncio. Estava ali, entrando cada vez mais em mim mesma, ficando bem com minha presença, minha própria solidão em uma praia com milhares de pessoas. E isso não era ruim, era vitorioso! Fotografei segredos, cenas em movimento, desatenções. Fotografei os bonitos e os feios, e feios se tornavam bonitos na imagem, bonitos feios. Achei magnífico, continuei a gelar os momentos. Que poder era esse?
O clima, apesar de repleto de gente bela, maquiada e brilhosa, já era tedioso, e as crianças Daniel e Fernanda precisavam sair dali. Eu também morria de sede e o desejo era água, nada mais. Despedimo-nos do casal Paula e Eduardo (Paula que tinha estimulado esse encontro com uma ligação inédita), mas quando fomos nos despedir do outro casal, demoramos um bom tempo para achar alguma brecha, pois estavam numa conversa fervorosa com alguma parenta bonitinha de Antônio. Não conseguimos esperar. Deixamos o prédio 4016 e fomos ao mar!
O céu estava muito bonito, não parava de me seduzir. Queria roubá-lo pra mim, com seus tons inconstantes e tênues. Rapidamente se moldava às primeiras horas do dia e as luzes já queriam irromper no horizonte. Indo pelo calçadão, encontrei amigos que me fizeram tão bem no colégio. Amigos que competiam comigo, conversavam e me davam carinho. João me abraçou dando aqueles apertos familiares. Mais de uma vez agradeci pela atenção que me dava, tão parecida com a de anos atrás. Foi verdadeiramente emocionante. O tempo nos afastou, mas continuávamos nos tratando bem, com naturalidade. Victor continuava um grosseiro que fingia não ter coração. E, é claro, não me deixava falar. Quanta saudade daquela altura toda! Saudade de vê-lo todos os dias tagarelando. Mais uma vez os eufóricos Daniel e Fernanda não podiam esperar minhas conversas que pareciam não ter fim. Cedi às vontades dos agoniados, e finalmente fomos em direção ao mar.
Fernanda não hesitou em mergulhar nas águas mornas. O vento era gélido, mas não importava para ela. As histórias mais tarde seriam melhores contadas, imagino. Daniel também a acompanhou, e eu achei estranha e ao mesmo tempo fofa toda essa aproximação dos dois. Ele não foi tão corajoso e só molhou as pernas. Mas ficou lá, brincando. Estavam longe de mim, divertindo-se como crianças. Só podia fotografá-los. Era só o que eu podia fazer. Deleites momentâneos. 
Ainda encontramos três antigos colegas. Mateus, Pedro e Marcos. Faltava alguém ali, e eu não deixei de notar sua ausência. Acho que já é uma ausência de um bom tempo, mas, o que sei da vida dele? Nem mais o tenho nas redes sociais. Fiz questão de removê-lo. Não falava mais comigo, desde o término infantil. Sempre nutri a vontade de tê-lo novamente como amigo, mas as coisas, sabemos, são complicadas. Nós somos complicados. Nunca mais o vi. Meu primeiro namoradinho. Moramos na mesma cidade, mas nunca o vi, por acaso. Se fosse Marília falando, era o destino. Não acredito nisso, só acho que não ocorreram coincidências conosco. Ou talvez ele já tenha me visto, mas se escondeu pra sempre. Enfim, deveríamos saber medir o impacto que causamos nas pessoas.
Não estava tão à vontade ali - talvez pelas lembranças - e logo continuamos a jornada na areia. O Sol já se mostrava e iluminava a todos que não tinham sombra. Reencontramos a família de Daniel e ficamos ora na rua, ora na areia. Fernanda, de propósito, desapareceu. Quando a encontrei, e eu já estava enfurecida, escutei mentiras de que tinha me avisado e verdades de que alguém parecia ter passado no calçadão. Ela sabia que não poderia perder tempo comigo. Seu tempo agora quer ser gasto com outrem. Ela não hesitou, foi sem medo. Mas não encontrou nada.
Com o recente episódio, comecei a me preocupar a ponto de ligar para a que se separou do grupo. Ela já deveria estar em casa, mas eu duvidava bastante. Liguei diversas vezes até meu coração mesclar entre desespero e raiva. Daniel, com uma cara engraçada, tentava me animar com os olhos. Eu precisava de mais, queria palavras e atitudes. Mas sei que era aquilo que ele podia me dar no momento. Aceitei. Beijei sua boca gordinha e rosada. Beijaria mais e mais, mas ele, mesmo bêbado, parecia uma menina rejeitando um garoto safado. Parei. Voltei à minha responsabilidade. Ele estendeu o celular e, depois de ter negado várias vezes, num momento de orgulho, aceitei e liguei para a outra operadora da menina. A operadora que ela usa com os amigos. E desta vez pegou. Ela só estava com esse chip e é claro que o único que eu poderia ligar não estava com ela. Ela também não podia perder tempo comigo. As pessoas não podem perder tempo com as outras, só se isso for de seu interesse.
O veredito não me agradou, mas a vida é assim, dura. Já dizia o cara que sabia como ninguém humilhar e, logo depois, cheirar um ralo podre. Numa praça, ela passava a manhã do novo ano com alguém também novo, especificamente um rapaz. E logo ela que dissera que não faria isso. As pessoas sempre podem fazer o que dizem que não vão fazer. Não se engane, elas são fracas. “O espírito é forte, mas a carne é fraca”. Ele a levaria em casa e eu precisava acreditar que seria isso mesmo. O destino dela já não estava em minhas mãos e mesmo assim sentia-me responsável por qualquer coisa que a acontecesse. Fiz cara feia e o Sol jogou raios na minha careta. Tirei uma foto e me assustei com as rugas. Elas sempre me assustam. Pensei em fazer um pacto como Dorian Gray, mas ainda não tenho coragem. E, além do mais, eu já seria um quadro bem sujinho.
Finalmente a sensatez invadiu um cérebro e, diante de bêbados descontrolados e garrafas de vidro sendo quebradas no chão, incessante e incompreensivelmente, fomos convidados a ir para casa de carona. Nessa hora o céu não mais preenchia o vazio que eu sentia – a fome. Fiquei feliz em andar mais para ir dentro de um carro e chegar à minha geladeira de sobras deliciosas. Fomos andando e fizemos o caminho que costumava ser o do antigo apartamento de Daniel. Quanta nostalgia. Quanta beleza naquele tempo, quantas memórias, proibições. Nos encontrávamos na praia, nos beijávamos, nos abraçávamos. Carícias de jovens inexperientes. Eu sentia aquela timidez dentro de mim. Era tudo muito encantador. Eu criava amor para nós dois. Tanto amor que ficava chato, quando eu tinha acessos cegos de ciúme. Hoje não mais.
O carro veio lotado e feliz, com as lembranças recentes. Na minha rua, o carro parou, e eu beijei pela última vez, naquele dia, meu amor.
Cheguei à casa faminta, mas preferi um banho antes. Esperei a água doer nas costas, mas infelizmente ela era fraquinha. Aliás, eu também. Eu era fraca, e continuaria fraca, em pleno 2012.         
  


3 comentários

  1. Gosto bastaaante de um dos trechos desse conto em particular... uhauhaua
    Muito bom, lininha! só agora percebi que nunca tinha comentado, vê se pode? sempre comento mentalmente achando que se materializa aqui, vai entender hihi.
    Enfim, fica o registro da minha vontade de te ver sempre escrevendo, não apenas sobre o primeiríssimo mas sobre qualquer dia/história/ideia do ano! é sempre ótimo e gostoso de ler.

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  2. já disse que amo ler o que escreve, né? é como se fosse um livro (nada relacionado ao tamanho do texto) consigo viver junto cada momento minuciosamente detalhado! hehe!
    feliz 2012 pra você!

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  3. aaah, já comentei nesse post! hehhehe! te indiquei prum MEME... passe lá no blog depois pra ver certinho! ^^
    beijos!

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