quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Sétimo e oitavo dias

Peregrinou até achar a casa de um antigo amigo. Estava cansada das horas de viagem. Lembrou de sentar ao lado de um senhor alto e grande. Sofreu com antecipação por saber que teria que acordá-lo todas as vezes que quisesse ir ao banheiro. Malditos banheiros de avião. Dava medo aquela descarga. Na verdade, era uma descarga filosófica. Imagina se todos os problemas pudesses ser eliminados a vácuo, em instantes?

O amigo também estava cansado, mas era da rotina. Atualmente trabalhava mais de oito horas na cozinha do restaurante. Tinha chegado suado e oleoso. Evitou um abraço na amiga estrangeira para não assustá-la. 

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Tomaram banho juntos. Foi natural, como era há uns cinco anos. Riram juntos, fizeram penteados com o sabão do shampoo, ficaram envergonhados quando lavaram as partes íntimas. Ele deu uma rápida conferida nos seios e nas pernas dela, enquanto ela olhava o pênis e as nádegas. Fazia muito tempo que não se tratavam assim. Mas continuavam confortáveis. Estranhos não tomam banho juntos. Foram para o quarto e a excitação deu lugar a um sexo sôfrego, agoniado. Ela não esqueceu de pedir para usar a camisinha, mas ele não tinha. Ela tinha centenas na mala. Pegou todas no Carnaval, quando ainda estava no Brasil. Relembraram o prazer de estar juntos, a simplicidade daquela relação. Sem cobranças, sem brigas. Juntos mais uma vez, mesmo que apenas temporariamente.

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Amanheceram com a casa cheia. A família dele tinha vindo para as férias de Janeiro. As crianças desarrumavam a casa toda e brincavam com quaisquer objetos. Bolos eram dominós. Colchões eram tubarões. Criança sabe mesmo se divertir. Eram um bando de ébrios mirins, sem uma gota de álcool. Pequenas hienas que não paravam de rir. Ou de gritar pelos corredores. Adulto tenta imitar criança às vezes.

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No final do dia, ele mostrou as leituras que faria no ano. Ela criticou algumas obras, enquanto sentiu inveja de uns livros raros que ele possuía. Fizeram um jantar e adormeceram contando histórias. Ela se sentiu amada, a despeito das desventuras dos últimos dias. Pensou que poderiam tentar ficar juntos, alugar um quartinho. Mas nem emprego ela tinha mais... 

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Naquela noite, sonhou com seu amigo/amor ficando com outras garotas, em um grande parque de piscinas. Ele foi ríspido com ela, enquanto brigavam sobre ele falar da pele de pêssego de uma das amigas. E por causa de todas as fotos que tirou das colegas de classe de bikini. Ele estava orgulhoso de fazer parte de algum grupo, ela estava irada por não ser mais a única. Egoísmos deram espaço ao pesadelo que acabou com os dois se afastando, no ponto de ônibus. Ele foi embora, deixando aos pratos uma menina e o carro velho quebrado. O sonho continuou, com a menina entristecida e cabisbaixa. Ela sentou na rua e escondeu o rosto nas mãos. Ficou por longos minutos na mesma posição, até as costas doerem. Sentiu a coluna, mas preferiu se martirizar. Só despertou quando escutou uma música animada, gerada por um violão ali perto. Levantou o rosto amassado e vermelho, e viu o chileno, que mais parecia um mendigo. O chileno se aproximou e sentou ao seu lado, ofereceu um cigarro. Ela tragou, mesmo odiando aquele barato, e iniciou uma conversa. Passaram horas discutindo sobre as passeatas do Brasil, a repreensão policial, a dificuldade de poder fumar maconha hoje em dia. Discorreram sobre as futilidades do homem, e o vício com a internet. Falaram de música: ele citou artistas do Chile, ela enrubesceu por não conhecer nenhum deles. Trocaram dicas de bandas e de lugares para conhecer. Ele falou em amores poligâmicos, e elogiou os lábios da menina chorona. Ela se surpreendeu com a mudança repentina de interesses. Deteve-se à boca do chileno, às rugas de expressão que faziam no seu sorriso. Olhou os longos dreads e se sentiu atraída pela excentricidade do rapaz. Ele disse ter 25 anos, ela estava com 23. O estrangeiro tinha olhos verdes escuros.

Se beijaram.

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Ela acordou no meio do beijo. Virou para o lado e viu o amigo roncando baixinho. Como sempre, achou que seus sonhos eram realidade, então teve dificuldade de discernir sobre o que tinha acontecido de fato. Sentiu necessidade de olhar o celular do amigo, que estava carregando. Mas pensou melhor e sabia que estaria invadindo a privacidade. Não bastava ele dar uma hospedagem para ela? Abraçou o menino, que murmurou um bom dia cansado. Por mais que quisesse, não conseguiu dormir e voltar para o sonho.



segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

3º, 4º, 5º e 6º dias

Decidiu sair de casa. Abandonou os irmãos e o emprego. O amor de sempre também ficou para trás. Pegou endereço com o chileno e comprou a passagem no cartão do pai, pois ainda sabia todos os dados (guardados no notebook). Não se importava se haveria arrependimento. Tinha postergado deixar sua vida para trás há muito. Não toleraria mais nenhuma tapa do progenitor. Tinha lido umas merdas feministas, e sabia que não estava certo apanhar desse jeito. Nem se fosse puta. Inclusive nunca tinha dado por dinheiro, só por atração e histórias.

Pegou a mochila rasgada no fundo, todos os livros e as bijuterias. Roupas de menos e dois casacos. Trouxe a polaroide para ver se  ainda funcionava. Se despediu de dois amigos e aproveitou para pedir uma grana emprestada. Largou a faculdade, mesmo que só faltassem seis meses agora. Espero que os hipócritas se fodam, pensou enquanto lembrava dos gays enrustidos. Espero que os de cu virado para a Lua me esqueçam de vez, pensou nos traíras.

Assim, com a ajuda de uma companhia aérea muito eficiente, disse adeus ao país miserável.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Segundo dia

Teve que retornar à realidade. Era por isso que não acreditava no calendário - criaram para iludir as pessoas. Assim como o amor, pensou ainda triste. Recebeu de volta quem estava longe, com frases alegres como "Feliz 2014", "Você parece ótimo!"; trocou conversas, tomou atitudes, resolveu problemas do cliente. Trabalhou com impaciência. Participou de um ambiente em que precisava julgar a competência dos outros. Recompensaria os ganhadores. Lembrou dos últimos acontecimentos e se desconcentrou, não conseguiu acompanhar. Trocou Itália por Austrália. Foi rígida, escondeu a identidade (afinal, quem se importa?). Se despediu do dia cheio comendo muita maionese com sanduíche. Se arrependeu amargamente de ter feito esse pedido. Maionese deu enjoo. Tentou ver o lado bom da vida, e sentiu orgulho de ter, no dia anterior, mantido os princípios. A dignidade de ser quem é. 

Cada um sabe a dor e a alegria disso.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Primeiro dia

Os primeiros momentos foram de um beijo intenso e inédito. Parecia uma previsão do que o ano recém nascido seria. A promessa, no entanto, durou apenas algumas horas - como se tivesse validade de acordo com o nascer do Sol.

Era madrugada e em alguns minutos o céu foi riscado de luzes e estrondosos fogos de artifício. Gritaria e abraços múltiplos, desejos de melhores vidas e dias felizes. Momento propício para se ter bobamente esperança. Instante perfeito para recomeçar tudo outra vez, mesmo que a importância da noite fosse o usufruto do Carpe Diem.

Energéticos para adoçar a vida, misturados a quinhentos mililitros de vodka com muito gelo. Tanto gelo que daria uma garganta inflamada nos dias seguintes. Ou teriam sido os gritos e a vontade de quebrar tudo ao redor?

Risos, fotografias tentando roubar aqueles momentos que nunca mais, em nenhuma circunstância, voltarão a acontecer. Nem se Deus quiser. Quem aproveitou, foi esperto. Foi inteligente quem não perdeu as únicas lembranças gostosas para a areia gananciosa da praia.

Os raios do Sol esquentaram a cabeça de algumas pessoas, detentoras da ética e da moral. Gente com autonomia para criar maniqueísmos, julgamentos e punição para os errantes. Ele até usava um distintivo invisível na roupa, e se orgulhava disso. Viu algumas mulheres com roupas curtas e, apesar da excitação, reprimiu o desejo com um gole rápido no espumante, o qual só tomava em respeito à tradição do seu país. Bando de puta, pensava. Bando de prostituta. Ao citar mentalmente esses nomes, rapidamente enrubesceu pelas lembranças dos tempos em que era adúltero. Mas sobre isso, rezava todos os dias e pagava o dízimo para se sentir menos culpado pelos pecados de outrora. Hoje ninguém mais poderia reclamar, pois se dedicava somente ao trabalho e à família, e por isso era juiz de seu rebanho.

Viu a cria perdendo a cabeça. E perdeu junto com ela. Levou pra longe do grupo, mandou se calar. Cale-se. Mas ela, provavelmente endiabrada, gritava em resposta: Afasta de mim esse cale-se. Ele cuspia a vergonha de ter criado alguém tão fora dos padrões. O orgulho dos méritos da cria se esvaíram depois do espetáculo de horror com passos cambaleantes, o riso frouxo, a vontade de mijar no meio da sua mulher. Parecia uma imbecil, uma doente mental. Que desrespeito com o próprio pai, rei da verdade! Ele continuou na sua árdua tarefa de educar a inconsequente, e a cada vez que mandava calar e não era atendido, batia em seu rosto. Chacoalhava seus braços para frente e para trás, com força, com a permissão de Deus. Borrou o batom, a sombra e o delineador que dava ao rosto da jovem um ar felino. 

Ela apanhou muito.

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Tentaram dar um calmante, uma palavra amiga, um empurrão para sair do show de terror que acabara de acontecer. Era ano novo, Jesus. O que precisava para ter paz nos primeiros segundos disso? Abstinência? Ela gritava sobre como tudo era injusto, perguntava-se que direitos legais tinha, afirmava com convicção que se tivesse um pênis no meio das pernas, não teria passado tanta vergonha. Maldita vagina, maldita história das mulheres ao longo dos séculos. Quem manda ser costela de Adão? Chutou com força a banca de jornal e quebrou a vidraça, enquanto se sujava com o próprio sangue. Depois, riu longamente, como uma hiena, até não aguentar mais e dormir sob os braços do beijo.

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Acordou com dores no braço. Verificou que marcas roxinhas estavam espalhadas nos lugares que antes tinham mãos julgadoras. Ficou triste. Tentou esquecer, deixar a mágoa para um dia melancólico. Comeu sushi de graça, dormiu na casa das sete mulheres, tomou banho de chuva dentro da piscina. Era chuva de novela. Comeu porco, frango, arroz. Quis resumir o dia em descanso, comida e sono. A água da piscina tinha feito tão bem que, quando chegou à casa (hospedagem amorosa, mas temporária), nem se importou em retirar o cloro dos cabelos duros. Dormiu suja.

© Escreva carla, escreva
Maira Gall