quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Primeiro dia

Os primeiros momentos foram de um beijo intenso e inédito. Parecia uma previsão do que o ano recém nascido seria. A promessa, no entanto, durou apenas algumas horas - como se tivesse validade de acordo com o nascer do Sol.

Era madrugada e em alguns minutos o céu foi riscado de luzes e estrondosos fogos de artifício. Gritaria e abraços múltiplos, desejos de melhores vidas e dias felizes. Momento propício para se ter bobamente esperança. Instante perfeito para recomeçar tudo outra vez, mesmo que a importância da noite fosse o usufruto do Carpe Diem.

Energéticos para adoçar a vida, misturados a quinhentos mililitros de vodka com muito gelo. Tanto gelo que daria uma garganta inflamada nos dias seguintes. Ou teriam sido os gritos e a vontade de quebrar tudo ao redor?

Risos, fotografias tentando roubar aqueles momentos que nunca mais, em nenhuma circunstância, voltarão a acontecer. Nem se Deus quiser. Quem aproveitou, foi esperto. Foi inteligente quem não perdeu as únicas lembranças gostosas para a areia gananciosa da praia.

Os raios do Sol esquentaram a cabeça de algumas pessoas, detentoras da ética e da moral. Gente com autonomia para criar maniqueísmos, julgamentos e punição para os errantes. Ele até usava um distintivo invisível na roupa, e se orgulhava disso. Viu algumas mulheres com roupas curtas e, apesar da excitação, reprimiu o desejo com um gole rápido no espumante, o qual só tomava em respeito à tradição do seu país. Bando de puta, pensava. Bando de prostituta. Ao citar mentalmente esses nomes, rapidamente enrubesceu pelas lembranças dos tempos em que era adúltero. Mas sobre isso, rezava todos os dias e pagava o dízimo para se sentir menos culpado pelos pecados de outrora. Hoje ninguém mais poderia reclamar, pois se dedicava somente ao trabalho e à família, e por isso era juiz de seu rebanho.

Viu a cria perdendo a cabeça. E perdeu junto com ela. Levou pra longe do grupo, mandou se calar. Cale-se. Mas ela, provavelmente endiabrada, gritava em resposta: Afasta de mim esse cale-se. Ele cuspia a vergonha de ter criado alguém tão fora dos padrões. O orgulho dos méritos da cria se esvaíram depois do espetáculo de horror com passos cambaleantes, o riso frouxo, a vontade de mijar no meio da sua mulher. Parecia uma imbecil, uma doente mental. Que desrespeito com o próprio pai, rei da verdade! Ele continuou na sua árdua tarefa de educar a inconsequente, e a cada vez que mandava calar e não era atendido, batia em seu rosto. Chacoalhava seus braços para frente e para trás, com força, com a permissão de Deus. Borrou o batom, a sombra e o delineador que dava ao rosto da jovem um ar felino. 

Ela apanhou muito.

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Tentaram dar um calmante, uma palavra amiga, um empurrão para sair do show de terror que acabara de acontecer. Era ano novo, Jesus. O que precisava para ter paz nos primeiros segundos disso? Abstinência? Ela gritava sobre como tudo era injusto, perguntava-se que direitos legais tinha, afirmava com convicção que se tivesse um pênis no meio das pernas, não teria passado tanta vergonha. Maldita vagina, maldita história das mulheres ao longo dos séculos. Quem manda ser costela de Adão? Chutou com força a banca de jornal e quebrou a vidraça, enquanto se sujava com o próprio sangue. Depois, riu longamente, como uma hiena, até não aguentar mais e dormir sob os braços do beijo.

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Acordou com dores no braço. Verificou que marcas roxinhas estavam espalhadas nos lugares que antes tinham mãos julgadoras. Ficou triste. Tentou esquecer, deixar a mágoa para um dia melancólico. Comeu sushi de graça, dormiu na casa das sete mulheres, tomou banho de chuva dentro da piscina. Era chuva de novela. Comeu porco, frango, arroz. Quis resumir o dia em descanso, comida e sono. A água da piscina tinha feito tão bem que, quando chegou à casa (hospedagem amorosa, mas temporária), nem se importou em retirar o cloro dos cabelos duros. Dormiu suja.

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